Proporção da utilização de radioterapia no tratamento oncológico dos pacientes atendidos no SUS

Introdução:

A radioterapia, ou terapia com radiação ionizante, é um método terapêutico que consiste da utilização de radiações ionizantes para danificar o DNA das células, e dessa forma, destruí-las ou impedir seu crescimento. Na oncologia, é amplamente empregada com a finalidade de extinguir o tumor ou impedir o seu crescimento (Ahmad et al., 2012). Trata-se de uma terapia segura, apesar de seus efeitos colaterais, e é considerado um dos tratamentos mais custo-efetivos disponíveis atualmente (Ahmad et al., 2012; Atun et al, 2015).

O tratamento do câncer com radiação ionizante pode ser utilizado como: terapia única, com propósitos curativos; como adjuvante à quimioterapia e/ou à cirurgia; ou ainda como tratamento paliativo (Lievens et al., 2017). A radioterapia promove um excelente controle do tumor, resultando em um aumento significativo da sobrevida global e da qualidade de vida dos pacientes com câncer (Atun et al., 2015; Lievens et al., 2017). Apesar dos investimentos para implementação de um serviço de radioterapia serem muito elevados, pois envolvem custos de aquisição de equipamentos, construção de infraestrutura, manutenção e formação de recursos humanos, os benefícios clínicos alcançados, como aumento da sobrevida e da qualidade de vida, aliados à longa vida útil dos equipamentos, compensam os investimentos iniciais (Atun et al., 2015; Verma et al., 2015).

Recentemente, Mendez e colaboradores avaliaram, com base na estimativa de incidência de câncer de 2016 no Brasil, que a falta de acesso à terapia com radiação ionizante poderia acarretar na morte de mais de 6.200 pessoas em até 10 anos (Mendez et al., 2017).  Tamanho potencial de impacto faz com que a disponibilidade da radioterapia seja crucial ao cuidado oncológico, desempenhando papel fundamental no alcance dos melhores desfechos.

Estima-se que entre 50 e 60% dos pacientes com câncer terão indicação de radioterapia em alguma etapa do tratamento, seja com propósitos curativos, adjuvantes ou paliativos (Atun et al, 2015; Schaue e McBride, 2015). Entretanto, estudos mostram que, mesmo em países desenvolvidos, há uma subutilização desta modalidade terapêutica (Atun et al., 2015; Borras et al., 2015).

No Brasil, dados sobre a proporção de utilização da radioterapia são escassos.  No estudo de Mendez e colaboradores, os autores estimam que apenas metade dos pacientes que possuem a indicação de tratamento com radioterapia realizam o procedimento, o que corresponderia a uma proporção de utilização de cerca de 25% a 30% de todos os casos de câncer. Todavia, o denominador utilizado para calcular a proporção de utilização de radioterapia foi a estimativa de incidência do INCA reduzida apenas da população atendida pelo sistema privado de saúde e o numerador, por sua vez, foi o número de pacientes que realizaram o procedimento radioterápico apenas no SUS. Isto é, o denominador continha todos os casos de câncer do país menos os atendidos no sistema privado ao passo que o numerador continha apenas uma parte do sistema público, a dos atendidos pelo SUS, deixando de contar os muitos pacientes que se tratam em centros públicos que, em função de seu modelo de gestão, podem ou não registrar seus atendimentos nas bases do DATASUS (como os hospitais universitários, hospitais das forças armadas, hospitais de servidores públicos, etc.) (Brasil, 1990; Carvalho, 2019).

Consequentemente, como os termos utilizados para compor a fração pertenciam a universos distintos, o resultado encontrado não permite responder se a proporção de casos de câncer que são irradiados está adequada. Além disso, os autores assumiram que a proporção de utilização no SUS era a mesma para todos os tipos de câncer analisados, ou seja, assumiram que a indicação de radioterapia seria a mesma para qualquer tipo de câncer (Mendez et al, 2017).

Diante da importância da radioterapia para o tratamento do câncer e os limitados dados sobre a realidade nacional, o presente estudo objetivou avaliar a proporção de pacientes que tiveram acesso à radioterapia dentre os que realizaram tratamento oncológico no SUS, entre 2009 e 2017, de acordo com o tipo de câncer e suas características demográficas e compará-los aos dados da literatura sobre a proporção de utilização de radioterapia.

Metodologia:

Tratou-se de um estudo retrospectivo e descritivo, baseado em dados secundários das bases de dados das APACS (Autorização de Procedimento Ambulatorial) de Quimioterapia e Radioterapia do Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS (SIA-SUS).

Foram extraídos e unificados em um mesmo banco todos os registros das APACS de Quimioterapia e Radioterapia do DATASUS entre 2008 e 2017. A partir do código criptografado do Cartão Nacional de Saúde (CNS) (variável AP_CNSPCN) identificamos os pacientes de acordo com o tratamento: quimioterapia, radioterapia, ou ambos os tratamentos (pacientes que possuíam registros nas duas bases). Em seguida, ainda a partir do código criptografado do CNS, mantivemos apenas o primeiro atendimento registrado nas bases do SIA-SUS, eliminando os registros da continuidade do tratamento.

A partir do primeiro registro de atendimento realizamos a contagem do número total de pacientes atendidos entre 2009 e 2017, de acordo com a Unidade da Federação (UF) de residência, tipos de câncer, sexo, faixa etária, ano de atendimento e tipo de tratamento. Para o cálculo da proporção de utilização de radioterapia dividimos o número de paciente que realizaram radioterapia e ambos os tratamentos (quimioterapia e radioterapia), entre 2009 e 2017, pelo total de pacientes atendidos no mesmo período. Nos casos dos pacientes que realizaram ambos os tratamentos, a proporção foi calculada para o ano de atendimento da primeira APAC, independente de qual tenha sido o primeiro procedimento terapêutico.

A seleção dos tipos de cânceres avaliados no presente estudo foi realizada com base nos cânceres considerados pelo INCA nas Estimativas de Incidência do Câncer. Foram incluídos os seguintes tipos de cânceres, de acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – Décima Revisão (CID 10): Câncer de cavidade oral (C00- C10); 3- Câncer de esôfago (C15); Câncer de estômago (C16); Câncer de cólon e reto (C18-C21); Câncer de laringe (C32); Câncer de traqueia, brônquio e pulmão (C33-C34); Melanoma maligno da pele (C43); 9- Outras neoplasias malignas da pele (C44); 10- Câncer de mama feminina (C50); 11- Câncer do colo do útero (C53); 12- Câncer do corpo do útero (C54); Câncer de ovário (C56); 14- Câncer de próstata (C61); 15- Câncer de bexiga (C67); Câncer do sistema nervoso centra (SNC) (C70-C72); 17- Câncer da glândula tireoide (C73); Linfoma de Hodgkin (C81); Linfoma não- Hodgkin (C82-C85; C96), Leucemias (C91-C95), as demais neoplasias foram agrupadas na categoria Outras neoplasias (INCA,2017).

Adicionalmente, afim de compararmos os resultados da proporção de utilização de radioterapia nos pacientes atendidos no SUS com as proporções recomendadas pela literatura, de acordo com o tipo de neoplasia, realizamos uma pesquisa bibliográfica na base de dados bibliográficos PubMed/MEDLINE, utilizando como estratégia de busca os termos livres “radiotherapy” AND “utilization rate” AND “need assessment”. Foram selecionados os artigos que apresentassem a estimativa da proporção ótima de utilização de radioterapia dos cânceres de interesse do estudo.

A evolução do número de pacientes que realizaram radioterapia e a evolução da proporção de utilização da radioterapia foi analisada por meio do Modelo Linear Generalizado. O nível de significância adotado na análise foi de 5%.

Resultados:

Bases de dados das APCS de Radioterapia e Quimioterapia:

Entre 2009 e 2017, realizaram tratamento oncológico no SUS o total de 1.614.498 pacientes. Deste total, 875.768 pacientes realizaram algum procedimento terapêutico de radioterapia, portanto, 54% dos pacientes registrados nas bases do SIA-SUS utilizaram a radioterapia durante o tratamento. O número absoluto de pacientes que realizaram radioterapia aumentou, em média, 3,6% ao ano (ExpB=1,036, IC=1,035-1,037) no período analisado. Contudo, a proporção de tratamento com radioterapia em relação ao total de pacientes que realizaram tratamento oncológico se manteve estável ao longo dos anos (ExpB= 0,992, IC= 0,958-1,026), variando entre 50% e 57% do total de pacientes.

As UF com maior proporção de pacientes que realizaram a radioterapia foram: Rondônia (67%), Goiás (59%) e Paraná (58%), e as com menor proporção foram: Distrito Federal (29%), Roraima (33%) e Amapá (35%). Com relação aos tipos de neoplasias, as com maior proporção de pacientes tratados com radioterapia foram: C44: Outras neoplasias malignas da pele (100%), C53: Colo de útero (89%) e C32: Laringe (88%), enquanto que as com menor proporção foram: C56: Ovário (6%); C91-95: Leucemias (7%) e o C82-C85, C96: Linfoma não-Hodgkin (20%).

O número de mulheres (53%) que realizaram procedimento de radioterapia foi pouco superior ao de homens (47%), no entanto, a proporção de uso de radioterapia foi a mesma em ambos os sexos (54%). A faixa etária mais frequente, entre os pacientes que realizaram radioterapia, foi a de 60 a 69 anos, seguida pela 50 a 59 anos e 70 a 79 anos respectivamente. A proporção de tratamento com radioterapia é superior a 50% nas faixas etárias acima de 40 anos, sendo a maior na faixa etária de 50 a 59 anos (57%). Contudo, nas faixas etárias até 29 anos, a proporção não supera os 42%, sendo a menor delas na população com até 9 anos (26%).

Finalmente, no que se refere ao tipo de tratamento, 20% dos pacientes realizaram somente a radioterapia, 34% realizaram a radioterapia e quimioterapia e 46% realizaram somente a quimioterapia.

Pesquisa Bibliográfica:

Após a pesquisa bibliográfica foram identificados 10 artigos com estimativas da proporção de utilização ótima de radioterapia. Os estudos foram realizados por dois grupos de pesquisa: (i) o grupo de Colaboração para Pesquisa e Avaliação de Desfechos de Câncer (CCORE – Collaboration for Cancer Outcomes Research and Evaluation) do ministério da saúde australiano que estimou a proporção para os cânceres de cavidade oral (Delaney et al 2005b), esôfago (Delaney et al, 2004b), estômago (Delaney et al, 2004b), laringe (Delaney et al, 2005b), melanoma (Delaney et al, 2004a), colo do útero (Delaney et al, 2004c), corpo do útero, ovário (Delaney et al, 2004c), bexiga (Delaney et al., 2005a), SNC (Delaney et al, 2006), tireoide (Delaney et al, 2006), linfomas (Featherstone et al., 2005a) e leucemias (Featherstone et al., 2005b); (ii) o grupo do Instituto da Rainha de Pesquisa de Câncer (CRI – Queen’s Cancer Research Institute) da Queen’s University, em Ontário no Canadá, que estimou a proporção para os canceres de colorreto (Faroudi et al., 2003b), pulmão (Tyldesley et al, 2001), mama (Faroudi et al., 2002) e próstata (Faroudi et al., 2003a). Não foram encontradas estimativas para os demais tipos de câncer.
Quando comparados aos dados da literatura, as proporções de utilização de radioterapia no SUS estão acima do recomendado pela literatura no tratamento de 8 tipos de cânceres (Tabela I).

Tabela I: Neoplasias com proporção de utilização de radioterapia acima do recomendado:

Neoplasia Recomendado pela literatura Observado no estudo Referência
C00-C10: Cavidade Oral ≈ 70%* 85% (Delaney et al 2005b)
C18-C21: Cólon e reto 24% 37% (Faroudi et al., 2003b)
C43: Melanoma 28% 44% (Delaney et al; 2004a)
C53: Colo do útero 65% 89% (Delaney, 2004c)
C54: Corpo do útero 46% 86% (Delaney et al., 2004d)
C56: Ovário 4% 6% (Delaney et al., 2004c)
C73: Glândula tireoide 10% 77% (Delaney et al, 2006)
C91-C95: Leucemias 4% 7% (Featherstone et al., 2005b)

* Valor aproximado, pois os autores do artigo avaliaram a proporção de utilização para cada tipo de câncer de cabeça e pescoço isoladamente, mas consideramos apenas as proporções daqueles que compõe o agrupamento C00-C10: Cavidade oral.

No entanto, para 9 tipos de neoplasias, a proporção de utilização de radioterapia está abaixo do recomendado pela literatura (Tabela II).

Tabela II: Neoplasias com proporção de utilização de radioterapia abaixo do recomendado:

Neoplasia Recomendado pela literatura Observado no estudo Referência
C15: Esôfago 80% 76% (Delaney et al 2004b)
C16: Estômago 68% 33% (Delaney et al 2004b)
C32: Laringe 100% 88% (Delaney et al 2005b)
C33-C34: Traqueia, brônquio e pulmão 61%* 52% (Tyldesley et al, 2001)
C50: Mama 66% 54% (Faroudi et al., 2002)
C67: Bexiga 58% 23% (Delaney et al., 2004c)
C70-C72: SNC 92% 86% (Delaney et al, 2006)
C81: Linfoma de Hodgkin 75% 43% (Featherstone et al., 2005a)
C81-C85; C96: Linfoma não-Hodgkin 64% 20%

(Featherstone et al., 2005a)

* Os autores do artigo avaliaram apenas o câncer de pulmão, mas nosso estudo considerou o agrupamento C33-C34: Traqueia, brônquio e pulmão.

Apenas o câncer de próstata teve a proporção de utilização de radioterapia dentro do recomendado pela literatura, com 61% de recomendação e observado no estudo de 61% dos casos (Faroudi et al., 2003a).

Discussão:

O número de pacientes identificados nas bases das APACS de Quimioterapia e Radioterapia é muito inferior às estimativas de incidência de câncer publicadas pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA) no mesmo período.  O INCA estimou, para este período, uma incidência de 4.827.590 casos de câncer (INCA,2007;2009;2013;2015;2017) e o presente estudo identificou 1.614.498 de casos atendidos no SUS. A discrepância entre as estimativas de incidência do INCA e o número obtido em nosso estudo pode ser explicada, em parte, por três fatores: parcela da população brasileira que faz seu tratamento na saúde privada e em outros centros públicos de tratamento que estão fora das bases do SUS; as características das bases de dados utilizadas; e a incidência do câncer de pele não melanoma.

As estimativas do INCA consideram a incidência em toda a população, enquanto as bases do SIA-SUS registram apenas os pacientes tratados no SUS. Desta forma, os pacientes atendidos na saúde suplementar, que correspondem a cerca de 22% da população (ANS,2019), não estão incluídos em nossos resultados, bem como os pacientes do sistema “público” que são atendidos em unidades de saúde com outras fontes de financiamento e que não compõe o SUS, como os hospitais das Forças Armadas, os Hospitais dos servidores públicos e hospitais universitários (Brasil, 1990; Carvalho 2019). Vale destacar que estas instituições podem compor o SUS como instituições conveniadas e apenas nestes casos os atendimentos são registrados no DATASUS (Brasil 1990; Carvalho 2019)

Com relação as características das bases utilizadas, as bases das APACS de Quimioterapia e Radioterapia incluem os registros de atendimentos realizados em nível ambulatorial e não incluem, portanto, os pacientes atendidos no nível hospitalar (Queiroz et al., 2009). Finalmente, as bases do SIA-SUS são destinadas ao reembolso dos procedimentos terapêuticos realizados pelas instituições de saúde, conforme a tabela de procedimentos do SUS. Logo, o objetivo final destas bases é administrativo e o preenchimento das APACS atende a este objetivo (Souza et al., 2010). Consequentemente estes registros, apesar de representarem a totalidade da produção dos atendimentos do SUS, possuem uma limitada aplicação epidemiológica.

No que se refere a incidência do câncer de pele não melanoma, este tipo de câncer corresponde a cerca de 27% das estimativas do INCA no período (INCA,2007;2009;2013;2015;2017).  Contudo, dados da literatura demonstram que entre 80% e mais de 95% dos casos do câncer de pele não melanoma são tratados por meio de excisão cirúrgica (Minton, 2008; Stang e Weichenthal, 2011; Doran et al, 2015, Rong et al., 2015), cujo procedimento não é registrado nas bases das APACS de Quimioterapia e Radioterapia e, consequentemente, não foram identificados neste estudo.

O número de pacientes que realizaram tratamento para câncer de pele identificados no presente estudo (28.913) corresponde a cerca de 3% da incidência estimada pelo INCA (1.034.085 novos casos), já subtraindo os 22% com acesso aos planos de saúde no período (INCA,2007;2009;2013;2015;2017, ANS, 2019). Portanto, se considerarmos as limitações já mencionadas, esta proporção de casos de câncer de pele irradiados aproxima-se dos dados da literatura que mencionam que menos de 5% dos casos são tratados com radioterapia ou quimioterapia.

Vale destacar que o estudo de Mendez e colaboradores não desconsideraram a incidência do câncer de pele não melanoma no cálculo do déficit de radioterapia no país. Desta forma, a estimativa de que apenas cerca de 25% a 30% dos pacientes que possuem indicação de radioterapia possuem acesso ao procedimento, bem como a suposição de que esta proporção se aplica igualmente a todos os tipos de câncer, fazem com que os resultados deste estudo em questão estejam superestimados (Mendez et al., 2017).

Considerando as limitações já discutidas, e na hipótese de ser real a diferença encontrada de cerca de 1,2 milhão entre o número de pacientes estimados pelo INCA e os atendidos pelo SUS, no período analisado, isso sugeriria fortemente que há uma dificuldade de diagnóstico e acesso ao tratamento de câncer como um todo e não apenas para o tratamento radioterápico.

Nesta discussão cabe ressaltar ainda que, quando se trata da avaliação do dimensionamento dos serviços de atenção oncológica, a incidência estimada de câncer pode não ser o melhor indicador, se o sistema de saúde não for capaz de diagnosticar todos os casos estimados. Isto tem particular relevância no caso da radioterapia, pois, por se tratar de um recurso terapêutico, é necessário que antes o paciente seja diagnosticado para que seja possível avaliar a possível indicação ou não do tratamento. Desta forma, julgamos adequado avaliar a proporção de utilização de radioterapia dos pacientes que realizaram tratamento no SUS, uma vez que se considera os pacientes que foram diagnosticados e, por consequência, elegíveis para o tratamento. Portanto, apesar das claras limitações – já discutidas – do nosso trabalho, consideramos que os resultados apresentados, por considerarem todos os atendimentos registrados entre 2009 e 2017, são representativos da oferta de radioterapia no SUS.

Apesar da proporção de utilização de radioterapia estar de acordo com a literatura internacional, o número de aparelhos de radioterapia disponíveis no país está abaixo do preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A OMS recomenda um equipamento de radioterapia para cada 300 mil habitantes. Para atender a demanda de todas as UF seriam necessários 711 equipamentos. Todavia, segundo o Censo de Radioterapia no Brasil, elaborado pelo Ministério da Saúde, há apenas 383 equipamentos de radioterapia no Brasil, mas, destes, apenas 272 estão disponíveis no SUS (MS,2019).

Em algumas UF, como Roraima e Amapá, não há nenhum aparelho de radioterapia disponível. Os pacientes residentes destes estados precisam se deslocar para outros estados para realizarem a radioterapia, o que explica o fato destes dois estados apresentarem as menores proporções de utilização de radioterapia. Curiosamente, o estado do Acre, segundo o Censo, não possui nenhum equipamento de radioterapia registrado, contudo nas bases do SIA-SUS constam registros de APACS realizadas neste estado, o que explica sua adequada proporção de utilização de radioterapia (55%). Já no Distrito Federal, a despeito de possuir 4 equipamentos, dos 16.398 pacientes residentes desta UF que realizam tratamento oncológico pelo SUS, apenas 4.820 (29%) realizaram tratamento radioterápico, o que sugere uma subutilização grave destes equipamentos (MS,2019).

Tão ou mais importante que a proporção de utilização de radioterapia é a qualidade do tratamento ofertado. Ainda que a realização de algum tipo de radioterapia seja melhor que nenhuma radioterapia, a qualidade do tratamento é determinante para sua eficácia e segurança, pois apenas a radioterapia adequada demonstrou ser capaz de reduzir o risco de recidivas ou progressão da doença (Atun et al., 2015, Borras et al., 2015). Lamentavelmente, o Censo de Radioterapia no Brasil evidenciou que cerca de 38% dos equipamentos de radioterapia disponíveis no SUS são considerados obsoletos, (não estão adequados pois estão fora do período de “validade” e não contam mais com serviço de assistência técnica) pelos respectivos fabricantes e, se não houver investimento na aquisição de novos equipamentos, em 2022 estima-se que a obsolescência chegará a 50,5% (MS, 2019).

O tempo para início da radioterapia também é fator relevante, Nascimento e Silva evidenciaram que cerca de 28% das mulheres (em uma amostra de 342 pacientes) com câncer de colo do útero com indicação de radioterapia imediata iniciaram o tratamento após mais de 60 dias da data do diagnóstico (Nascimento e Silva, 2015a) e que o início do tratamento em mais de 64 dias está associado a menor sobrevida em 5 anos (Nascimento e Silva, 2015b). Em nosso estudo não avaliamos o tempo para início do tratamento pois, exceto nos casos em que a radioterapia é a primeira opção terapêutica, não é possível avaliar, através dos registros das APACS, se os pacientes submetidos à radioterapia tiveram acesso a ela dentro do tempo necessário para alcançar o melhor desfecho do tratamento. Tampouco é possível avaliar se os pacientes realizaram o número preconizado de sessões para o tratamento do seu tipo de câncer.

No que se refere a proporção de utilização de acordo com tipo de câncer, houve uma variação significativa nos pacientes atendidos no SUS, variando de 6% a 100%, para os cânceres de ovário e pele não melanoma, respectivamente. No entanto, esta variação é esperada e se explica pelo fato de que a indicação de radioterapia varia de acordo com o tipo e gravidade do câncer (Atun et al., 2015).

Em razão desta variação buscamos comparar a proporção de utilização de radioterapia no SUS com os dados disponíveis na literatura. Os estudos encontrados em nossa pesquisa bibliográfica levam em consideração robustas evidencias sobre a indicação de radioterapia para o tratamento dos diferentes tipos de câncer e também os dados epidemiológicos dos países dos grupos, neste caso, Austrália e Canadá. Desta forma, tais estimativas podem não representar a realidade da população brasileira.  Entretanto, estas são as únicas fontes de informações disponíveis e, ainda que com limitações, permitem situar o cenário nacional frente ao cenário ideal proposto por estes estudos.

A comparação das proporções observadas em nosso estudo com as proporções ótimas de utilização indicadas pela literatura evidenciaram que, apesar de, no total, o Brasil apresentar uma proporção de utilização de radioterapia dentro do recomendado, quando avaliamos por tipo de câncer, a utilização de radioterapia é muito desigual no país. Cerca de metade das neoplasias analisadas está com proporção de utilização abaixo do recomendado e idêntico número de neoplasias apresentou proporção de utilização acima do recomendado. Esse resultado parece sugerir que, além dos equipamentos estarem em número insuficiente (MS,2019), a indicação de radioterapia acontece de forma inadequada.

Mas como os achados exibem dados muito díspares, a inadequação da utilização parece não ser a explicação mais provável. A existência de diferenças importantes entre as características epidemiológicas das duas populações seria uma explicação mais plausível, pois, de modo geral, estadios mais avançados se beneficiam mais do tratamento radioterápico (Atun et al., 2015; Borras et al., 2015) o que explicaria a proporção de utilização acima do recomendado para algumas neoplasias. A auditoria para avaliar a implementação da Política Nacional para Prevenção e Controle do Câncer, elaborada Pelo Tribunal de Contas da União, indica que, no Brasil, cerca de 54% do total de casos de cânceres são diagnosticados nos estadiamento avançados III e IV. Por tipo de câncer, esse mesmo relatório aponta variações importantes, sendo em estágio avançado o diagnóstico de 83% dos casos de câncer de traqueia/ brônquio/pulmão, 79% dos casos de câncer de cavidade oral, 68% dos casos de câncer de colón e reto e 50% dos casos de câncer de colo de útero (TCU, 2019).Dado que estes cânceres estão entre os cinco tipos de maior incidência no país (INCA,2017), seus diagnósticos avançados justificariam suas respectivas elevadas proporções de utilização de radioterapia.

Neste sentido, o aumento da demanda de radioterapia para o tratamento das neoplasias diagnosticadas em estágios mais avançados prejudicaria o acesso de todos os demais pacientes em estágios mais iniciais, fazendo com que a proporção de utilização de radioterapia fosse muito superior ao preconizado em alguns tipos de câncer e muito inferior em outros. Diante do cenário exposto, é possível que a realidade de diagnóstico tardio de câncer presente no país justifique a discrepância observada entre os achados nacionais e os dados da literatura.

Ainda tendo em vista o cenário de diagnóstico tardio no país, é razoável supor que, apesar de 54% da população em tratamento oncológico ter realizado a radioterapia, este número esteja aquém da real necessidade em razão do diagnóstico de câncer no país. Uma vez que os diagnósticos em estágios avançados, de modo geral, demandam maior proporção de radioterapia (Atun et al., 2015). Destacamos, no entanto, que os resultados deste estudo sugerem esta hipótese, mas não fornecem subsídios para confirma-la. Já com relação ao sexo, não houve diferença na proporção de acesso à radioterapia entre homens e mulheres, mesmo com as diferenças nos canceres mais incidentes em cada um dos sexos (INCA,2017).

Os resultados do nosso estudo, a princípio, apontam para um cenário confortável do acesso a radioterapia no Brasil. Entretanto, quando analisamos mais a fundo a utilização desta importante opção terapêutica, evidenciamos que ainda são necessários muitos investimentos para garantir um tratamento oncológico mais efetivo, especialmente no que se refere ao registro dos dados populacionais, epidemiológicos, dados clínicos e terapêuticos. Demais investimentos deveriam ser pautados nos registros de mundo real que, infelizmente, não estão disponíveis no país.

Considerações Finais:

Embora a proporção total de utilização de radioterapia no Brasil esteja dentro do estimado pela literatura internacional, há grandes disparidades entre o recomendado e o observado quando avaliamos por tipo de neoplasia, com neoplasias com proporções de utilização muito acima e muito abaixo do esperado.

Estas discrepâncias na realização dos procedimentos podem estar relacionadas ao estadiamento ao diagnóstico do câncer, evidenciando assim que a adoção de políticas de diagnóstico precoce, bem com as de prevenção, são de extrema importância para a otimização dos recursos do SUS.

Finalmente, apesar da proporção de utilização de radioterapia estar de acordo com a literatura, isto não implica que o atendimento prestado está ocorrendo no tempo e com a qualidade necessárias.

Portanto, é urgente a adoção de medidas de vigilância e monitoramento, que incluam indicadores como o tempo de espera para a realização da radioterapia, a adequabilidade da diretriz terapêutica seguida, a qualidade do procedimento prestado, a qualidade do desfecho alcançado (complicações pós procedimento, sequelas permanentes, tempo de sobrevida, etc.), bem como a manutenção desses registros para que se possa avaliar a evolução da qualidade dos serviços prestados.  Apenas com esse acompanhamento é que se poderá dimensionar, de forma mais precisa, a necessidade de investimentos na aquisição de novos equipamentos, investimentos em infraestrutura, na formação de recursos humanos, a fim de que o SUS possa atender a demanda de radioterapia da população da maneira mais propícia.

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