Introdução:

O consumo de bebidas alcoólicas é comum na rotina de grande parcela da população, além de ser um hábito socialmente aceito. No entanto, o consumo contínuo do álcool, principalmente em grandes quantidades, está associado há vários problemas de saúde, dentre eles o câncer (Seitz, 2017). Diversos estudos mostram que o consumo de álcool é um fator de risco para o desenvolvimento de vários tipos de câncer, em especial, os cânceres do aparelho gastrointestinal (Vanella et al, 2019). Contudo, alguns estudos indicam que o álcool também é fator de risco para o câncer de pulmão e mama (Chen et al, 2011; Alvarez-Avellón et al, 2017; Connor, 2017).

O mecanismo pelo qual o etanol implica no aumento do risco para incidência de câncer ainda não está totalmente esclarecido. A depender do tipo de tumor, o álcool contribui de diferentes formas para o desenvolvimento do câncer. O álcool é um irritante da mucosa do organismo, em particular na boca e garganta. Esta ação irritante pode levar a lesões e, durante o processo de reparação das células danificadas, pode ocorrer alterações no DNA das células e consequentemente acarretar no desenvolvimento de um câncer. Durante seu metabolismo, o álcool é convertido em acetaldeído pelas bactérias intestinais, o acetaldeído, por sua vez, é uma substância carcinogênica (Seitz e Becker, 2007). Além disso, o metabolismo do álcool também provoca lesões no fígado, acarretando em um processo inflamatório e cicatricial que também pode levar as alterações do DNA e consequente desenvolvimento de câncer (Boffeta e Hashibe, 2006).

O álcool também atua como solvente, favorecendo a entrada de outras substâncias carcinogênicas nas células, especialmente as substâncias provenientes do tabaco (Chen, 2011). Estudos indicam que indivíduos fumantes que consomem bebidas alcoólicas apresentam um risco ainda maior para desenvolver o câncer de pulmão. No entanto, ao mesmo tempo em que o álcool facilita a entrada de substâncias, ele dificulta a absorção de vitaminas, especialmente o folato (ou ácido fólico). A deficiência de folato está associada à incidência de câncer de mama e câncer colorretal (Asante et al, 2018).

Finalmente, o álcool possui efeitos endócrinos que podem aumentar o risco para vários tipos de câncer. Estudos evidenciam que o consumo de bebidas alcoólicas está associado a níveis elevados de estrogênio, importante hormônio que regula o desenvolvimento do tecido mamário, aumentando assim o risco para câncer de mama. Além disso, o consumo de álcool está associado à obesidade, que também configura um importante fator de risco para diversos tipos de cânceres (Boffeta e Hashibe, 2006).

Diante do exposto, entender a relação entre o consumo de bebidas alcoólicas e incidência de câncer é de grande relevância para a saúde pública. Uma metodologia de estudo epidemiológico que contribui para o entendimento desta relação é o delineamento dito ecológico. O estudo ecológico permite identificar a associação entre a exposição a um possível fator de risco e a ocorrência da doença, utilizando dados coletivos de uma população, e não de cada indivíduo, obtidos em bases de dados secundários. Esta metodologia, nos permite, portanto, analisar a relação entre os hábitos de consumo de álcool de uma população e as taxas de incidência de câncer (Lima-Costa e Barreto, 2003).

No Brasil podemos obter os hábitos de consumo de bebidas alcoólicas das populações das capitais dos estados brasileiros através do Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico (VIGITEL). O VIGITEL faz parte das ações do Ministério da Saúde para estruturar a vigilância de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) no país. Entre essas doenças incluem-se diabetes, obesidade, cânceres, doenças respiratórias crônicas e cardiovasculares como hipertensão arterial, que têm grande impacto na qualidade de vida da população. O VIGITEL tem como objetivo monitorar a frequência e a distribuição de fatores de risco e proteção para doenças crônicas não transmissíveis em todas as capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal (Vigitel Brasil, 2017).

As taxas de incidência dos tipos de cânceres mais frequentes na população podem ser consultadas na estimativa anual realizada pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA). As taxas de incidência das capitais dos estados brasileiros são calculadas com base nas informações de incidência dos cânceres, obtidas pelo Registro de Câncer de Base Populacional (RCBP), bem como as informações sobre a mortalidade por câncer, do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) do Departamento de Informática do SUS (DATASUS) (INCA, 2017).

Diante do exposto, o presente estudo teve como objetivo avaliar a correlação entre o consumo abusivo de álcool e a incidência de determinados tipos de cânceres nas capitais dos estados brasileiros.

Metodologia do estudo:

Realizamos um estudo ecológico para correlacionar os hábitos de consumo de bebidas alcoólicas dos habitantes das capitais brasileiras e a taxa de incidência dos cânceres de cavidade oral, de laringe, de esôfago, estômago, cólon e reto, traqueia, mama, brônquio e pulmão.

As informações sobre os hábitos de consumo de álcool dos habitantes das capitais dos estados brasileiros foram expressadas e analisadas na forma de porcentagem da população que realiza o uso abusivo de álcool, em relação ao total da população entrevistada pelo VIGITEL. O VIGITEL considera como uso abusivo o consumo de 5 doses, para homens, ou 4 doses, para mulheres, de bebida alcoólica em uma única ocasião, nos últimos 30 dias.  Uma dose de bebida alcoólica corresponde a uma lata de cerveja, uma taça de vinho ou uma dose de qualquer bebida destilada (Vigitel Brasil, 2017).

Foram obtidas as taxas de incidência dos cânceres de cavidade oral, de laringe, de esôfago, estômago, cólon e reto, traqueia, mama, brônquio e pulmão divulgadas pelo INCA de cada uma das capitais dos estados brasileiros. Foram utilizadas as taxas brutas de incidência do total da população, exceto para o câncer de mama, que foi utilizado a taxa bruta de incidência na população do sexo feminino (INCA, 2017).

Para correlacionar as incidências dos cânceres citados com a proporção da população que faz consumo abusivo de álcool nas capitais brasileiras, realizamos o teste de correlação de Pearson. O coeficiente de correlação de Pearson exprime o grau de relação entre duas variáveis quantitativas. O coeficiente pode assumir valores entre -1 e +1. Quanto mais próximo o valor de 1, maior é a correlação entre as variáveis. Valores do coeficiente de correlação ente 0 e 0,30 são considerados fracos, valores entre 0,31 e 0,59 são considerados moderados, valores entre 0,60 e 0,80 são considerados fortes e, finalmente, valores de correlação acima de 0,80 são considerados muito fortes (Chan, 2003). Se o sinal do coeficiente for positivo, significa que a correlação é positiva, ou seja, se a porcentagem da população que faz uso abusivo de álcool aumenta, a taxa de incidência de câncer também aumenta. Enquanto que, se o sinal for negativo, a correlação é negativa, ou seja, se a porcentagem da população que faz uso abusivo de álcool aumenta, a taxa de incidência de câncer diminui (Chan, 2003). O nível de significância adotado no teste foi de 5%.

Resultados do estudo:

A proporção da população que faz uso abusivo de álcool variou entre 23,98%, no Distrito Federal, e 12,5%, em Manaus. Além do Distrito Federal, as maiores frequências de consumo abusivo foram: Cuiabá (21,84%), Salvador (20,94%), Palmas (20,82%) e Belo Horizonte (20,36%). Dentre os cânceres analisados, o câncer de mama apresenta maior taxa de incidência, seguido pelo de cólon e reto e o de traqueia, brônquio e pulmão.

Os resultados dos testes de correlação de Pearson entre a porcentagem da população que faz uso abusivo de álcool e a taxa de incidência bruta dos cânceres estão representados na Tabela 1. Foram encontrados coeficientes de correlação positivos e fracos para as taxas de incidência dos cânceres de cavidade oral, esôfago, colón e reto e mama. O coeficiente de correlação foi negativo e moderado para a taxa do câncer de estômago e negativos e nulos para as taxas dos cânceres de laringe e traqueia, brônquios e pulmão.

No entanto, é importante destacarmos que, independentemente do coeficiente de correlação, em todos os testes, o nível de significância foi maior que 5%, indicando, portanto, que não há significância estatística nos resultados da análise. Desta forma, em nosso estudo, não evidenciamos a correlação entre a proporção da população que faz uso abusivo de álcool e taxa de incidência dos cânceres analisados.

 

Tabela 1: Resultados dos testes de correlação de Pearson entre a porcentagem da população que faz uso abusivo de álcool e a taxa de incidência bruta dos cânceres:

 

Tipo de Câncer

Coeficiente de Correlação Nível de significância

Cavidade oral

r  =  0,127

p = 0,528

Laringe r = – 0,025

p = 0,902

Esôfago r =  0,005

p = 0,980

Estômago

r = – 0,305 p = 0,122
Cólon e Reto r =  0,142

p = 0,479

Mama

r =  0,205 p = 0,305

Traqueia, Brônquios e Pulmão

r =  -0,148

p = 0,462

 

Discussão dos resultados:

Diversos estudos na literatura indicam que o consumo de álcool é um fator de risco para o desenvolvimento de câncer (Tsugane et al, 1999; Pedersen et al, 2003; Dickerman et al, 2017; Park et al, 2019). Estudos epidemiológicos estimam que o consumo de álcool, em 2012, foi responsavel por 5,8% de todas as mortes causadas por câncer, que representa aproximadamente meio milhão de mortes (Praud et al, 2016). No entanto, em nosso estudo não identificamos a associação entre a proporção da população que faz uso abusivo de álcool e a taxa de incidência de câncer. Esta discordância entres os nossos resultados e os dados da literatura podem ser explicadas, em grande parte, pelas diferenças metodológicas entre os estudos.

A grande maioria dos estudos que estabelece a causalidade entre o consumo de álcool e a incidência de câncer, avaliam o risco individual da pessoa que consome bebidas alcoólicas desenvolverem cânceres. Esta avaliação do risco individual é realizada por meio de estudos de coorte, e não estudos ecológicos, que foi a metodologia utilizada no presente estudo (Tsugane et al, 1999; Pedersen et al, 2003; Dickerman et al, 2017; Park et al, 2019). Ainda que evidenciássemos correlação entre a população que faz uso abusivo de álcool e as taxas de incidência de câncer, por se tratarem de dados populacionais, não seria possível inferir sobre o risco individual da exposição ao álcool levar ao desenvolvimento de um câncer (Lima-Costa e Barreto, 2003).

Contudo, outros estudos de natureza ecológica também evidenciaram a associação entre o consumo de bebidas alcoólicas e a incidência de câncer (Petti e Scully, 2005; Grant, 2010; Miller et al, 2018). No entanto, nestes casos há diferenças significativas na mensuração do consumo de álcool. Em nosso estudo as taxas de incidência de câncer foram correlacionadas com a proporção da população que faz o uso abusivo de álcool, de acordo com o critério estabelecido pelo VIGITEL (4 doses ou mais para as mulheres e 5 doses ou mais para os homens, em uma única ocasião nos últimos 30 dias) (Vigitel, 2017).

Em um estudo ecológico baseados em dados populacionais de diferentes países mensurou o consumo de álcool da população em litros consumidos por ano (Petti e Scully, 2005), outro estudo utilizou dados de consumo da população, obtidos por meio de questionário validado para avaliar os hábitos de consumo de álcool, no qual são informados o número de dias no mês em que foram consumidas bebidas alcoólicas (Miller et al, 2018). Desta forma, as informações sobre o consumo de bebidas alcoólicas utilizadas por estes estudos são muito mais precisas do que aquelas fornecidas pelo VIGITEL.

A representação dos hábitos de consumo de álcool da população das capitais dos estados brasileiros, sobre a forma de proporção da população que faz uso abusivo, e não sobre a quantidade de álcool de fato consumida, também impossibilita estabelecer na população a relação dose-resposta que existe entre o consumo de álcool e a incidência de câncer, tanto a nível individual, quanto a nível populacional (Park et al, 2009; Grant, 2010; Ibáñez-Sanz, 2017). Uma vez que, pelo critério estabelecido pelo VIGITEL, não é possível com exatidão o real consumo de álcool pela população das capitais dos estados brasileiros.

O critério estabelecido pelo VIGITEL, consumo de 4 doses ou mais, para mulheres, e consumo de 5 doses ou mais, para homens, em uma única ocasião nos últimos 30 dias, está muito abaixo, em número de doses, dos critérios utilizados por outros estudos que analisam a relação entre o consumo de álcool. Estudos na literatura avaliam o risco para o desenvolvimento de câncer para os padrões de consumo que põem variar de 3 doses por semana até 5 doses ao dia (Longnecker, 1990; Pedersen et al, 2003; Dickerman et al, 2016, Park et al, 2019).

Outro aspecto que deve ser considerado nesta discussão é o método utilizado pelo VIGITEL para as entrevistas. O VIGITEL realiza entrevistas telefônicas em amostras da população adulta (18 anos ou mais), residente em domicílios com linha de telefone fixo. Para os resultados serem representativos de toda a população, os números telefônicos que entram na pesquisa são sorteados, a partir dos cadastros de telefones existentes nas capitais do país (Vigitel, 2017).

No entanto, segundo dados da Agência Nacional de Telecomunicações, em dezembro 2018, o Brasil contava com 37,5 milhões de linha de telefonia fixa e 229 milhões de linhas de telefonia móvel. A proporção de domicílios com telefonia fixa chega a 40% nos estados da região Sul e Sudeste e varia entre 10 e 30% no estado da região norte e nordeste, ao passo que a proporção da população com telefonia móvel pode chegar a 120% nos estados da região Sudeste e 90% nos estados da região Norte e Nordeste (ANATEL, 2019a; ANATEL, 2019b). Portanto, a utilização de linhas de telefonia se configura como um viés de seleção, uma vez que a maior parte da população não possui linhas de telefonia fixa e sua distribuição no país variar muito. Desta forma, os dados de consumo de álcool dos entrevistados pelo VIGITEL podem não ser representativos da totalidade da população (Lima- Costa e Barreto, 2003).

Nesta discussão, é importante destacarmos que a literatura apresenta robustas evidências, provenientes de estudos com modelos animais (Heit C et al 2015; Peter Guengerich e Avadhani, 2018), estudos epidemiológicos (Dickerman et al, 2016; Miller et al, 2018) e, inclusive, metanálises (Ma et al, 2017; Cai et al, 2018) demonstrando o potencial carcinogênico do álcool. Diante destas evidências, o etanol proveniente de bebidas alcoólicas é classificado, pela Agência Internacional de Pesquisa do Câncer (International Agency for Research on Cancer- IARC), da Organização Mundial da Saúde, como substância carcinogênica para humanos (Grupo 1 da lista de agentes Classificados pela INPC) (IARC, 2019). Por esta mesma razão o INCA recomenta que nenhum tipo de bebida alcoólica seja consumido, destacando a relação dose – resposta entre o consumo de álcool e a incidência de câncer (INCA, 2019).

Conclusões do estudo:

Em nosso estudo não foram identificadas correlações entre a proporção da população que faz uso abusivo de álcool e as taxas de incidência dos cânceres de cavidade oral, de laringe, de esôfago, estômago, cólon e reto, traqueia, mama, brônquio e pulmão.

Contudo, embora nossos resultados não tenham evidenciado a relação entre o consumo de álcool e a incidência de câncer, existe uma grande quantidade de estudos em modelos animais, epidemiológicos e metanálises que estabelecem a relação de causalidade entre estas duas variáveis.

O fato de não encontramos correlações entre o consumo de álcool e a incidência de câncer, apesar dos dados na literatura, se deve a diferenças metodológicas na coleta dos dados dos hábitos de saúde e no delineamento epidemiológico do estudo.

Referências:

Agência Nacional de Telecomunicações- b. Brasil registra 229 milhões de linhas móveis em dezembro [website]. Disponível em: http://www.anatel.gov.br/dados/acessos-telefonia-movel. Acesso em fev/2019.

Agência Nacional de Telecomunicações- a. Telefonia fixa soma 37,5 milhões de linhas em dezembro de 2018 [website]. Disponível em: http://www.anatel.gov.br/dados/acessos-telefonia-fixa. Acesso em fev/2019.

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