Uso de quelantes de ferro no Brasil com foco na síndrome mielodisplásica

Síndrome Mielodisplásica e terapia quelante de ferro

 

A síndrome mielodisplásica (SMD) é um grupo de doenças heterogêneas refratárias que se originam nas células precursoras hematopoiéticas da medula óssea. A produção do sangue está alterada, aumentando o risco de se transformar em leucemia mieloide aguda (LMA). A alteração no sangue mais comum é a anemia e a maioria dos pacientes precisa de transfusão de glóbulos vermelhos, melhorando os sintomas de anemia e a qualidade de vida dos pacientes. Porém, as transfusões levam ao acúmulo de ferro no corpo e nosso organismo não tem mecanismos fisiológicos para eliminar esse excesso de ferro.1

A terapia quelante de ferro (TQF) geralmente é indicada nos pacientes com SMD de melhor prognóstico (baixo risco e risco intermediário-1) que têm sobrecarga transfusional de ferro quando o valor da ferritina sérica for superior a 1.000 ng/ml. Meta-análise feita em 2019 que incluiu 7.242 pessoas com SMD de todos os riscos prognósticos (baixo/intermediário/alto/não classificado) revelou que a TQF diminuiu o risco de mortalidade em 43% em comparação com quem não faz TQF (HR 0,57; IC95% 0,44-0,70; p<0,001) e diminuiu o risco de transformação em leucemia em 30% (HR 0,70; IC95% 0,52-0,93; p=0,016). O benefício da TQF ocorreu em todos os grupos de risco prognóstico da SMD.1

 

Sistema Único de Saúde

 

No Sistema Único de Saúde (SUS) são fornecidos aos pacientes três tipos de medicamentos para a sobrecarga de ferro: o Deferasirox, o Mesilato de Desferroxamina e a Deferiprona, os três com registros vigentes na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).2

 

Deferasirox faz parte do Grupo 1A do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF), cuja aquisição é centralizada pelo Ministério da Saúde e fornecidos às Secretarias de Saúde dos Estados e Distrito Federal. Mesilato de Desferroxamina e Deferiprona fazem parte do Grupo 1B do CEAF e a aquisição é feita pelas Secretarias de Saúde dos Estados e Distrito Federal e os custos são ressarcidos com recursos financeiros transferidos pelo Ministério da Saúde, na modalidade fundo a fundo.3

 

Quando o estabelecimento público de saúde entrega os medicamentos aos pacientes, o procedimento fica registrado por meio de um LME (Laudo para Solicitação, Avaliação e Autorização de Medicamentos). Os códigos utilizados no LME são intoxicação por ferro (CID-10 T45.4) e doença do metabolismo do ferro (CID-10 E83.1), incluindo, mas não permitindo diferenciar, os casos de anemias dependentes de transfusão de hemácias com sobrecarga de ferro, entre elas as talassemias, anemia falciforme e SMD.

 

Dispensação nos serviços públicos

 

Analisando a distribuição dos quelantes de ferro no SUS, podemos entender um pouco mais sobre o cenário atual e as oscilações que o tratamento da sobrecarga de ferro em pacientes com hemossiderose transfusional (acúmulo de ferro no sangue ocasionado pelas transfusões) vêm sofrendo na última década. Entre os anos de 2010 e 2018, o número de pacientes recebendo TQF aumentou 96%, passando de 2.283 em 2010 para 4.466 em 2018. As pacientes do sexo feminino (51%) foram pouco mais frequentes que os do sexo masculino (49%).

 

A proporção de pacientes em idade pediátrica (<19 anos) recebendo TQF em 2018 foi 23%, adultos entre 20 e 59 anos foi 47% e nos maiores de 60 anos foi 30%. É possível que os pacientes com SMD estejam nessa faixa etária acima de 60 anos de idade. 

No período estudado, 41% dos pacientes eram do Estado de São Paulo, 8% de Minas Gerais, 6% do Rio Grande do Sul e 6% da Bahia. A maior parte (54%) dos pacientes retiram o medicamento no mesmo município de residência e 99% dos pacientes retiram no mesmo estado de residência.

 

Entre 2010 e 2018 foram identificados 199.291 LME para TQF. O Deferasirox (em todas as concentrações) foi a TQF mais prescrita no período, correspondendo a 87% do total, e também a que apresentou o maior crescimento no número de LME no período. A quantidade de LME de Deferasirox (em todas as concentrações) cresceu de 8.572, em 2010, para 23.169, em 2018, um crescimento de mais de 170%. A Deferiprona apresentou um crescimento geral de aproximadamente 36%, aumentando de 1.341 LME em 2010 para 1.818 em 2018. Finalmente, a Desferroxamina apresentou um decréscimo do número de LME, reduzindo de 1.291 em 2010 para 748 em 2018, o que representa uma redução de cerca de 42%.

 

O custo total do SUS com a TQF no período analisado foi de R$ 506.277.467,66. Em 2010 este custo foi de R$ 27.779.258,00, uma média de R$ R$12.167,87 por paciente e em 2018 foi de R$ 64.647.167,20, com a média por paciente de R$ 14.475,41, o que representa um aumento de 133% no custo total e 19% no custo médio por paciente.

 

No período analisado, embora a quantidade de LME, considerando todos os tipos de quelantes, tenha aumentado em proporção significativamente superior ao aumento do número de pacientes em TQF (+130% versus +96%), esse achado não permite inferir se os casos de SMD tiveram ou não a frequência de prescrição de quelantes aumentada, dado que o CID identificado na LME está agrupado em doenças do metabolismo do ferro, conforme exposto anteriormente.

 

Tanto o aumento dos gastos com quelantes, como o aumento do número de LMEs e de paciente em TQF são justificados pela possibilidade de maior sobrevida e qualidade de vida dos casos com hemossiderose transfusional e, consequentemente, menor morbidade relacionada a sobrecarga de ferro. Porém, para avaliar se a maior oferta de quelantes teve algum impacto na saúde da população alvo, os dados epidemiológicos disponíveis no Brasil são, infelizmente, insuficientes.

 

Referências Bibliográficas:

1. Liu H, Yang N, Meng S, Zhang Y, Zhang H, Zhang W. Iron chelation therapy for myelodysplastic syndrome: a systematic review and meta-analysis. Clin Exp Med. 2019 Nov 11.

 

2. ANVISA. Consulta de Produtos e Medicamentos. Disponível on-line em: <http://www7.anvisa.gov.br/datavisa/consulta_produto/Medicamentos/frmConsultaMedicamentosPersistir.asp.> Acesso em 14/01/2020

 

3. Ministério da Saúde. Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF). Disponível on line em: http://www.saude.gov.br/assistencia-farmaceutica/medicamentos-rename/componente-especializado-da-assistencia-farmaceutica-ceaf. Acesso em 14/01/2020