Introdução
O mieloma múltiplo (MM) é uma forma maligna de câncer que se origina a partir da expansão descontrolada de plasmócitos malignos da medula óssea1,2 e representa 1% de todas as neoplasias malignas prevalentes globalmente e 10 a 15% dos cânceres hematológicos2,3,4.
Segundo a Agência Internacional para Pesquisa em Câncer da Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2020, ocorreram cerca de 176 mil novos casos de mieloma múltiplo, resultando em mais de 117 mil óbitos em ambos os sexos. A incidência global foi de 1,8 novos casos por 100 mil habitantes, com uma taxa de mortalidade mundial de 1,1 óbitos por 100 mil habitantes. Na América do Sul, a incidência foi de 2,0 novos casos por 100 mil habitantes, com uma taxa de mortalidade de 1,5 óbitos por 100 mil habitantes, para ambos os sexos.
No Brasil, os dados existentes para o mieloma múltiplo são da pesquisa anterior do Observatório de Oncologia, realizada pela pesquisadora Nina Melo1,2. Essa pesquisa revelou que, entre 2008 e 2017, mais de 27 mil pessoas foram diagnosticadas com mieloma múltiplo no país, o equivalente a uma média anual de aproximadamente 2.700 diagnósticos, estimando-se uma incidência de 1,24 casos por 100 mil habitantes1,2. Além disso, houve um crescimento de 174% na comparação entre a quantidade de atendimentos aos pacientes em 2008 para essa quantidade em 20172.
Os principais fatores de risco para o mieloma múltiplo incluem idade, sexo, raça e histórico familiar1,4. Em relação à idade, é praticamente inexistente em crianças e é muito raramente diagnosticado em adultos com menos de 50 anos, enquanto mais de 60% dos casos são diagnosticados em adultos com mais de 65 anos1,4. Sua incidência é maior em homens do que em mulheres e quase duas vezes maior em pessoas negras em comparação com caucasianas1,4. Além disso, há uma forte associação de risco entre parentes de primeiro grau, devido ao seu caráter genético1.
Os resultados da pesquisa do Observatório de Oncologia2 para o mieloma múltiplo no país corroboram com o que é observado mundialmente. No Brasil, o sexo/gênero mais prevalente foi o masculino (52%) e a raça/cor mais frequente foi a branca2. A mediana da idade dos pacientes atendidos foi de 63 anos para os pacientes com mieloma múltiplo, com uma variação de 18 a 100 anos1,2. O estado com maior número de pacientes atendidos para o agravo foi São Paulo (7003)2.
Sobre sua fisiopatologia, a proliferação dos plasmócitos neoplásicos acarreta numa gama de alterações descritas pelo acrônimo CRAB: C – elevação do cálcio (> 10 mg/dL), R – disfunção renal (creatinina > 2 mg/dL ou clearance de creatinina < 40 ml/min), A – anemia (hemoglobina < 10 g/dL ou diminuição > 2g/dL a partir do normal do paciente) e B – doença óssea1,2,4.
A partir dessas alterações, o paciente de mieloma múltiplo pode apresentar sinais e sintomas localizados ou sistêmicos, dependendo do sítio de proliferação da neoplasia, o que pode comprometer sua qualidade de vida e sua capacidade funcional no dia-a-dia1. A avaliação do paciente com suspeita de mieloma múltiplo inclui uma história clínica abrangente com investigação dos sintomas iniciais1. Os sintomas comuns para esse agravo incluem dor óssea, anemia, infecções (devido à disfunção leucocitária) e alterações na função renal. Além disso, sintomas neurológicos também podem estar presentes1.
A doença óssea pode manifestar-se como dores osteomusculares e fraturas de fragilidade, sendo essa manifestação bastante prevalente1,3. A disfunção renal, causada pelo excesso de proteína-M e pela hipercalcemia, pode levar a oligúria e outros sintomas inespecíficos como náusea, fraqueza e sonolência. Já a disfunção dos linfócitos B pode resultar em quadros infecciosos recorrentes. Por fim, a síndrome de hiperviscosidade pode desencadear sintomas relacionados à diminuição do fluxo sanguíneo para o sistema nervoso central, levando a eventos tromboembólicos, com consequentes tontura e confusão mental1.
Para a maioria dos pacientes, a mieloma múltiplo é uma doença progressiva e sem cura, mas abordagens terapêuticas mais recentes melhoraram significativamente a qualidade de vida e sua sobrevida, que pode variar em torno de 10 anos4. Pacientes com mais de 70 anos e aqueles com comorbidades significativas e baixo estado de saúde geral apresentam um prognóstico menos favorável. Já a quimioterapia e o transplante autólogo de células tronco fornecem uma forte previsão da sobrevida4.
Porém, o desconhecimento do agravo por parte da classe médica se comporta como uma importante barreira ao tratamento, com atraso no seu diagnóstico e, consequentemente, agravamento da condição clínica e do estadiamento do mieloma múltiplo no paciente2.
Uma pesquisa conduzida pela Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (ABRALE) em 2017, envolvendo 200 pacientes diagnosticados com mieloma múltiplo, revelou que aproximadamente 29% desses pacientes enfrentaram uma demora superior a um ano para receber o diagnóstico. Além disso, cerca de 40% dos casos apresentaram desafios na obtenção do diagnóstico, exigindo consultas com mais de um médico2.
A situação enfrentada por pacientes diagnosticados com mieloma múltiplo destaca a relevância da necessidade do presente estudo. Dada a escassez de informações disponíveis sobre essas doenças no país, os dados epidemiológicos fornecidos são de extrema importância para orientar políticas públicas de saúde voltadas para aprimorar o atendimento a esses pacientes, principalmente no que diz respeito ao diagnóstico precoce.
Objetivos
Diante disso, o objetivo do presente estudo é fazer a análise descritiva da população atendida para o agravo no sistema de saúde brasileiro: suas internações, procedimentos médicos e registros hospitalares gerais, como também características sociodemográficas e distribuição geográfica.
Metodologia
Foram selecionados dados secundários para o mieloma múltiplo categorizado pelo CID Principal/Topográfico e CID de Primeiro Tratamento C90.0 do período de 2018 a 2022 nas bases públicas do Ministério da Saúde referentes à mortalidade do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), autorizações de procedimentos de alta complexidade para quimioterapia (APAC) do Sistema de Informação Ambulatorial (SIA) e autorizações de internações hospitalares do Sistema de Informação Hospitalares (SIH).
Esses bancos de dados dizem respeito à produção ambulatorial e hospitalar para o mieloma múltiplo provenientes do Sistema Único de Saúde (SUS), não apresentando dados da rede complementar. As bases públicas SIM, SIA e SIH usadas foram adquiridas no site de sistematização de dados do Ministério da Saúde, através do link: https://datasus.saude.gov.br/transferencia-de-arquivos/.
Os bancos de dados foram limpos e organizados com o Microsoft ExceI® para que fossem identificadas as seguintes variáveis dos pacientes: sexo, faixa etária, raça/cor, município em que reside e em que se trata (para avaliar se houve deslocamento), tempo entre diagnóstico e tratamento, local do procedimento/internação, custo do procedimento e da internação, tipo de procedimento, ano de diagnóstico, ano de realização do procedimento, ano de internação e ano de óbito para produção da série histórica nos anos estudados.
A partir disso, foi produzido um painel de bordo contendo as informações mais pertinentes do estudo para visualização através do programa Microsoft PowerBI®.
Resultados
1. SIM
O Brasil totalizou em 13.524 óbitos por Mieloma Múltiplo de 2018 a 2021 (não foram liberados até a presente data pelo Ministério da Saúde o total de óbitos pelo agravo em 2022). O estado com maior número de óbitos foi São Paulo (2.420), seguido por Minas Gerais (2.092) – ambos na região sudeste do país – e Bahia (1.166). O ano com a maior ocorrência de mortes foi o ano de 2019 (3.505) e o com a menor, 2020 (3.278).
Homens (51,9%) foram a óbito em maior proporção que mulheres (48,1%). A faixa etária com maior número de mortes foi a de 70 a 79 anos (30,2%), bem como os pacientes da raça/cor branca (57%).
2. SIA
O ano com maior número de procedimentos na série histórica foi 2022, com 69.879, e o menor foi 2018, com 56.121. O maior custo total para procedimentos foi 2022, com o acumulado de mais de 209 milhões de reais em gastos para essa doença. Já o custo médio por procedimento totalizou em R$ 1.518,00.
Homens contabilizaram em 51,8% dos pacientes, enquanto mulheres, 48,2%. A faixa etária e raça/cor com a maior proporção de usuários foi de, respectivamente, 60 a 69 anos (36,9%) e branca (44,8%). Duas importantes informações são que a maioria dos pacientes (56%) não mora no mesmo município em que realizou os procedimentos e que 79,7% dos pacientes tiveram que esperar um tempo superior a 60 dias para iniciar seu tratamento após seu diagnóstico.
O estado com maior número de procedimentos foi São Paulo (79.954), seguido por Minas Gerais (43.385) e Paraná (21.980).
3. SIH
Foram contabilizados 35.227 procedimentos entre 35.164 internações, onde o mais prevalente foi o Tratamento clínico do paciente oncológico. O estabelecimento com maior número de pacientes foi o Instituto do Câncer de São Paulo, com 1.188 internações.
O ano com maior número de internações na série histórica foi 2022, com 7.841, e o menor foi 2020, com 6.554 internações. O maior custo total para procedimentos foi 2022, com mais de 34 milhões de reais em gastos de internação para o Mieloma Múltiplo. Já o custo médio de internação totalizou em R$ 4.036,00, com média de internação de 9 dias.
Mais uma vez, homens foram a maioria dos internados (52,3%). A faixa etária e raça/cor com a maior proporção de internação foi de 60 a 69 anos (36,7%) e branca (41,7%), respectivamente. Mais de 53% dos pacientes que internaram o fizeram numa cidade diferente que residem. O estado com maior número de internações foi São Paulo (9.787), seguido por Minas Gerais (5.517) e Paraná (2.679). Das 35.164 internações, 4.409 pacientes foram a óbito.
Conclusão
Pode-se observar que, apesar de ser uma condição de saúde rara, o mieloma múltiplo apresenta consideráveis níveis de produção ambulatorial e hospitalar, sendo necessário aos seus pacientes passarem por diversos procedimentos ao longo de seus tratamentos.
Referências
1. Brasil. Ministério da Saúde. Conitec. Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas do Mieloma Múltiplo. 2022;1–136.
2. Melo N. Epidemiologia do Mieloma Múltiplo e distúrbios relacionados no Brasil [Internet]. Observatório de Oncologia. 2019. p. 1–6. Available from: https://observatoriodeoncologia.com.br/epidemiologia-do-mieloma-multiplo-e-disturbios-relacionados-no-brasil/
3. Abello V, Mantilla WA, Idrobo H, Sossa CL, Salazar LA, Pena A, et al. Real-World Evidence of Epidemiology and Clinical Outcomes in Multiple Myeloma, Findings from the Registry of Hemato-Oncologic Malignancies in Colombia, Observational Study. Clin Lymphoma, Myeloma Leuk [Internet]. 2022;22(6):e405–13. Available from: https://doi.org/10.1016/j.clml.2021.12.009
4. Organização das Nações Unidas (ONU). World Health Organization: Classification of Tumours of the Haematopoietic and Lymphoid Tissues. 2017. 986–988 p.