Os coronavírus são uma ampla família de vírus que podem causar uma variedade de condições, do resfriado comum a doenças mais graves, como a síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS-CoV) e a síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV). O novo coronavírus, denominado SARS-CoV-2, causador da doença COVID-19 foi detectado após a notificação de um surto em Wuhan, China, em dezembro de 2019 1. O aumento rápido dos casos em países asiáticos, tais como Tailândia, Japão, Coreia do Sul e Singapura, e a propagação para a Europa e demais continentes, levou a Organização Mundial de Saúde (OMS) a decretar uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, em 30 de janeiro de 2020 2 e uma pandemia no dia 11 de março de 2020 3.
A maioria das pessoas infectadas pelo novo coronavírus (cerca de 80%) se recupera da doença sem precisar de tratamento hospitalar. No entanto, pessoas acimas de 60 anos e as que têm outras doenças crônicas, como o câncer, têm maior risco de ficar gravemente doentes 4-5 além de uma probabilidade maior de desfechos desfavoráveis quando comparada à população geral 6-8.
Além desse cenário, a incidência e a mortalidade por câncer vêm aumentando no mundo, em parte pelo envelhecimento, pelo crescimento populacional, pela transição epidemiológica, como também pela mudança na distribuição e na prevalência dos fatores de risco de câncer, especialmente aos associados ao desenvolvimento socioeconômico com a incorporação de hábitos e atitudes associados à urbanização (sedentarismo, alimentação inadequada, entre outros) 9.
O enfrentamento da crise sanitária global instaurada pela pandemia de COVID-19 para cumprimento dos objetivos e recomendações iniciais da OPAS/OMS 10 para os planos de resposta imediata dos países, os quais incluíam desacelerar a transmissão da doença e disseminação de casos; oferecer a melhor assistência aos pacientes e minimizar os impactos da pandemia principalmente nos sistemas de saúde, exigiu uma ação emergencial. Os sistemas de saúde em geral, assim como no Brasil, não estavam preparados para atender de forma rápida e coordenada as necessidades de implementar ações de prevenção, controle e tratamento de uma doença infecciosa transmissível desconhecida e de tamanho impacto social.
Nesse contexto, as medidas emergenciais inicialmente implementadas focaram, especialmente, na reorganização dos serviços de saúde, no âmbito público e privado, com a priorização de leitos hospitalares, equipamentos, insumos médico hospitalares e alocação dos profissionais de saúde para prestar assistência àqueles gravemente doentes com infecção pelo novo Coronavírus. Com isso, ocorreram interrupções expressivas nos serviços de saúde destinados ao diagnóstico, tratamento, reabilitação de pacientes com outros agravos à saúde, incluindo pacientes com câncer.
Alguns dos principais impactos negativos vivenciados pelos pacientes com câncer se referiram ao acesso às consultas com médico especialista, alguns tipos de tratamentos oncológicos (quimioterapia e radioterapia), atenção domiciliar, exames essenciais e cirurgias programadas, as quais foram canceladas ou adiadas.
Muitos países também registraram queda significativa em novos diagnósticos de câncer, inclusive países mais desenvolvidos. O Registro de Câncer da Holanda observou uma queda de até 40% na incidência semanal de câncer, enquanto o Reino Unido teve redução de 75% nos encaminhamentos por suspeita de câncer desde o início da pandemia da Covid-19 11. Segundo o diretor da Organização Mundial da Saúde na Europa, Hans Kluge, no Quirguistão, país na Ásia Central, este número caiu 90% em abril de 2020.
Levantamento realizado em 2020 pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO) e Sociedade Brasileira de Patologia (SBP) junto aos principais serviços públicos e privados de referência no país, indica que desde o início da pandemia do novo Coronavírus houve redução de 70% no número de cirurgias de câncer e queda de 50% a 90% das biópsias. Com isso, estima-se que ao menos 50 mil brasileiros deixaram de receber o diagnóstico de câncer nos dois primeiros meses de pandemia 12.
O objetivo deste estudo foi levantar o número de procedimentos diagnósticos realizados no Brasil nos anos de 2019 a 2022 segundo Unidade da Federação e identificar possíveis quedas e impactos causados pela pandemia de Covid-19.
METODOLOGIA
Estudo descritivo baseado em dados secundários obtidos do Sistema de Informações Ambulatoriais do Departamento de Informática do SUS (DATASUS) entre os anos de 2019 e 2022.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Estudo indica que o número de procedimentos diagnósticos realizados no Sistema Único de Saúde (SUS) reduziu 32% no país no ano de 2020 quando comparado com o ano de 2019, sendo os meses de abril e maio foram os que representaram maior queda no período; Após esse período, os exames diagnósticos voltaram aos seus patamares normais e, em 2022, é possível perceber um aumento de quase 14% quando comparado a 2019.
Sem dúvidas, combater a pandemia e, ao mesmo tempo, manter a prestação de serviços de saúde de qualidade para controle e combate à outras condições e agravos à saúde foi um grande desafio. Entretanto, é importante ressaltar que o tratamento oncológico adequado e em tempo hábil é fundamental para o prognóstico da doença e é possível que esses adiamentos aumentem a morbimortalidade por câncer, o que pode ter consequências significativas para a saúde pública 13. Sendo assim, o tratamento ideal para o câncer deve equilibrar a proteção dos pacientes da infecção por SARS-CoV-2 com a necessidade de acesso contínuo ao diagnóstico precoce e a oferta de tratamento ideal 14.
Há ainda que se considerar o ponto de vista dos direitos fundamentais, e saúde configura, no caso brasileiro, um direito constitucional e social, o que na prática significa ter assegurado o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação. E nesse sentido, é igualmente importante a garantia acesso ao diagnóstico precoce, tratamento de qualidade, bem como, viabilizar a continuidade do cuidado a todos os pacientes com câncer diagnosticado no nosso país.
Adicionalmente ao impacto em novos diagnósticos de câncer, estudos realizados em diversos países no mundo indicam excesso de mortalidade durante a pandemia da Covid-19 que pode ser relacionada em parte à letalidade do COVID-19, mas também como consequência da sobrecarga dos serviços de saúde, resultando em cuidados precários e descontinuados para pacientes com diversos tipos de câncer. Além disso, os efeitos econômicos e sociais da pandemia provavelmente pioraram a saúde geral da população e contribuíram para o aumento da mortalidade por todas as causas 15-18.
Estudo recente estima que pode ocorrer excesso de 17,9 mil óbitos de pacientes oncológicos em um ano, mas este número pode subir para mais de 35,8 mil 14. Outro estudo realizado nos Estados Unidos indica que na próxima década, notadamente nos próximos dois anos, possam haver 10 mil óbitos em excesso sobre o câncer de mama e colorretal 19. Ou seja, estamos tratando de um problema de saúde pública crescente com grande relevância e, portanto, de elevado impacto sobre a sociedade.
As evidências nos mostram um cenário no Brasil com aumento significativo nos gastos com oncologia em 2022 e anos seguintes, devido ao represamento dos pacientes não diagnosticados, assim como pela piora do prognóstico dos pacientes não tratados. Além disso, haverá constante necessidade de um aumento na capacidade de diagnóstico e de tratamento dos pacientes uma vez que haverá forte tendência de incremento na média de atendimentos anuais por consultas com especialistas, devido ao aumento da demanda de pacientes antes não diagnosticados 20.
Assim, considerando o cenário da pandemia em curso e as principais consequências à saúde populacional, é relevante estimular a troca massiva de informações científicas e, também, de boas práticas no âmbito da gestão e dos cuidados em saúde no combate e controle das doenças crônicas não transmissíveis em tempos de crise sanitária, com especial atenção aos protocolos de prevenção e cuidados aos pacientes com câncer.
Identificar os gargalos da assistência oncológica intensificados pelas interrupções e cancelamentos dos serviços de saúde durante a pandemia é o ponto de partida. As consequências do represamento dos novos diagnósticos de câncer são preocupantes e acumulativas à curto, médio e longo prazo tanto na incidência, morbimortalidade por câncer na população, quanto na qualidade e sobrevida dos pacientes, nos custos dos sistemas de saúde, entre outras repercussões socioeconômicas para a sociedade em geral.
Finalmente, é recomendável construir soluções práticas de impacto coletivo para a ampla retomada dos exames de rastreamento e diagnóstico, consultas, procedimentos e acompanhamentos clínicos, além de reavaliar as políticas públicas vigentes para ampliar acesso e integrar as redes de atenção à saúde, para viabilizar estratégias efetivas que visem minimizar os efeitos negativos imediatos e nos anos subsequentes à pandemia de COVID-19 sobre a jornada de cuidados e a vida dos pacientes com câncer.
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