O câncer de mama é a neoplasia mais incidente entre as mulheres em todo o mundo. No Brasil, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) estimou para 2020 mais de 65 mil novos casos, o que torna, esta, a neoplasia mais incidente no país, independentemente do sexo (INCA, 2020). Além disso, o câncer de mama é atualmente a terceira causa de óbitos por câncer no país, com 18.296 óbitos e 2019 (SIM-DATASUS, 2020).
O câncer é um dos maiores desafios de saúde pública, especialmente o câncer de mama, uma vez que a morbimortalidade desta neoplasia está aumentando no país. (Lee et al, 2012; Correa N, 2019). Este aumento de morbimortalidade representa uma grande carga de assistência e econômica ao Sistema Único de Saúde (SUS), visto que os melhores desfechos do tratamento e qualidade de vida das mulheres estão relacionados com o diagnóstico precoce e rápido início do tratamento (Polverini et al, 2017, Eriksson et al, 2018; Mello Ramirez Medina, 2018; Rodriguez-Rincon et al, 2019).
As informações de incidência e mortalidade sobre o câncer são essenciais para o monitoramento da doença, bem como a implementação e avaliação de políticas públicas de saúde voltadas para sua prevenção e controle (Bray et al, 2014). No Brasil, as ações de vigilância de câncer são subsidiadas por dados de morbimortalidade obtidas pelos Registros de Câncer de Base Populacional (RCBP), Registros Hospitalares de Câncer (RHC) e pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Departamento de Informática do SUS (DATASUS) (INCA, 2020a).
No que diz respeito especificamente à incidência do câncer, os dados disponíveis se resumem aos coletados pelos RCBP, que possuem abrangência demográfica limitada a alguns poucos municípios no país, especialmente nas capitais, sendo que alguns estados sequer possuem um RCBP ativo (INCA, 2020b). Diante deste desafio, o INCA realiza periodicamente as estimativas de incidência dos principais tipos de câncer no país, dentre eles o câncer de mama (INCA, 2020a). No entanto, as estimativas do INCA são realizadas para as Unidades da Federação e capitais, não havendo, portanto, dados de base populacional sobre a incidência do câncer mama dos municípios brasileiros.
É muito importante a dimensão municipal nas ações de monitoramento do câncer, pois as políticas públicas, sobretudo de prevenção e rastreamento, são de responsabilidade dos gestores municipais que, por sua vez, atualmente, não dispõem de dados dos seus municípios, dificultando assim a elaboração de planos de prevenção e controle do câncer de mama adequadas para a sua realidade local. Portanto, o presente estudo intenciona estimar a incidência do câncer de mama nos 5.570 municípios brasileiros, para que os gestores e profissionais de saúde tenham acesso a dados que subsidiem as ações de saúde destas cidades.
Metodologia:
A incidência de câncer de mama dos municípios brasileiros será calculada através da metodologia de razão de incidência/mortalidade (I/M) proposta por Black e colaboradores (1997), que é uma das metodologias utilizadas para o cálculo das estimativas de incidência de câncer nacional e estaduais (INCA, 2020a).
Este método consiste em multiplicar a taxa observada de mortalidade da região pela razão entre os valores de incidência e mortalidade das localidades onde existam dados de incidência e mortalidade. Nesta análise, as taxas ajustadas e brutas por mil mulheres estimadas serão obtidas pela seguinte equação:
TI_MUN= TM_MUN x (TI_UF/TM_UF)
Em que:
TI_MUN= Taxa de incidência (bruta ou ajustada) estimada para o município.
TM_MUN= Taxa de mortalidade (bruta ou ajustada) do município calculada a partir da série histórica de mortalidade do município (2001-2017).
TI_UF= Taxa de incidência (bruta ou ajustada) da Unidade da Federação, estimada pelo INCA, para o ano de 2020.
TM_UF= Taxa de mortalidade (bruta ou ajustada) da Unidade da Federação calculada a partir da série histórica de mortalidade da Unidade da Federação (2001-2017).
Para as estimativas das capitais dos estados brasileiros foram consideradas as estimativas realizadas pelo INCA para o ano de 2020. A partir da taxa de mortalidade bruta e considerando a população dos municípios em 2020 foram estimados o número absoluto de casos de cada um dos municípios brasileiros, os números absolutos foram arredondados para o número inteiro mais próximo do número com decimais estimado.
O coeficiente populacional foi obtido a partir do Estudo de estimativas populacionais dos municípios, desagregados por sexo e idade, 2000-2020, elaborados pelo Ministério da Saúde e disponíveis para download no Tabulador On-line (Tabnet) do (DATASUS). As taxas foram ajustadas para a população padrão mundial proposta por Segi (1960) e modificada por Doll et al. (1966).
Resultados:
Qualidade do ajuste das estimativas:
O número total de novos casos de câncer de mama, a partir das estimativas dos municípios, foi de 64.705 casos. O INCA estimou 66.280 novos casos de câncer mama, portanto, o número total de novos casos da estimativa por municípios apresentou um erro de 2,4% em relação à estimativa do INCA.
O modelo de regressão linear evidenciou que o número de novos dos casos estimados a partir da estimativa dos municípios está fortemente associado com a estimativa de novos casos dos estados estimados pelo INCA (r2=0,998, p<0,001), com erro de, em média, 4,4% (IC=2,9%-5,9%).
Embora a mediana das taxas de incidência dos municípios não corresponda exatamente à taxa de incidência do estado, adicionalmente, realizamos modelos de regressão linear para comparar a mediana das taxas de incidência bruta e ajustada estimadas dos municípios com as taxas de incidência bruta e ajustada dos estados estimadas pelo INCA. Estes modelos evidenciaram que a mediana das taxas brutas (r2=0,952, p<0,001) e ajustadas (r2=0,886, p<0,001) dos municípios também está fortemente associada com respectivas taxas estimadas pelo INCA.
Estimativa do câncer de mama nos municípios brasileiros:
Cerca de 86% dos municípios brasileiros apresentaram estimativa de novos casos por ano inferior a 10 casos e apenas 2% (95 municípios) apresentaram mais de 100 casos ao ano. A mediana do número absoluto de novos casos por município foi de 2 casos e a mediana da taxa de incidência ajustada estimada dos municípios foi de 33,64 por 100 mil mulheres.
Apesar de, em números absolutos, a incidência ser baixa, cerca de 30% dos municípios apresentaram estimativa da taxa de incidência ajustada superior a taxa nacional estimada pelo INCA, de 43,74 novos casos por 100 mil mulheres.
Dentre os 30% dos municípios com a estimativa da taxa de incidência superior a nacional,72% estão na região sul e sudeste: 44% dos municípios (741 municípios) estão localizados na região Sudeste e 28% (483 municípios) na Região Sul. Os estados que proporcionalmente apresentaram o maior número de municípios com estimativa da taxa de incidência ajustada superior à nacional foram: Rio de Janeiro, com 77% dos municípios (71 municípios), Santa Catarina com 76% dos municípios (223 municípios) e Minas Gerais com 47% dos municípios (404 municípios) do estado.
Por outro lado, os 30% de municípios com menores estimativas das taxas de incidência, apresentaram taxa ajustada inferior a 23,10 novos casos por 100 mil mulheres. Dentre estes, 41% (687 municípios) estão localizados na região Nordeste e 19% (320 municípios) estão localizados na região Norte. Os estados que proporcionalmente apresentaram maior número de municípios com incidência menor que a nacional foram: Amazonas com 97% de seus municípios (60 municípios), Amapá com 94% (15 municípios) e o Pará com 92% (133 municípios).
Discussão:
Os resultados do presente estudo evidenciaram que a maior parte dos municípios com as maiores taxas de incidência estimadas estão localizados nas regiões Sul e Sudeste, enquanto que a maior parte dos municípios com as menores taxas de incidência estimadas estão localizados na região Nordeste, e, sobretudo, na região Norte. Estes resultados corroboram o cenário já observado nas estimativas estaduais realizadas pelo INCA, na qual os estados das regiões mencionadas apresentam as maiores e menores taxas de incidência para o câncer de mama, respectivamente.
Este cenário é esperado, uma vez que a incidência, não só do câncer de mama como também de outros tumores, está fortemente associada com fatores socioeconômicos como, envelhecimento populacional, índice de desenvolvimento humano, desigualdade social e acesso à serviços de saúde. De modo que os estados com maior desenvolvimento socioeconômico estão localizados nas regiões Sul e Sudeste, enquanto que os estados com menor desenvolvimento socioeconômico estão localizados nas regiões Norte e Nordeste (Ades et al., 2019).
Contudo, embora os municípios dos estados das regiões Norte e Nordeste apresentem as menores estimativas de taxas de incidência do câncer mama, os estados destas regiões também apresentam as maiores taxas de letalidade por câncer de mama do país, uma vez que a letalidade por câncer também está associada a menor desenvolvimento socioeconômico (Ades et al, 2019). Evidenciado assim a importância de políticas públicas de saúde nos municípios destas regiões afim de garantir a atenção de qualidade as mulheres diagnosticadas com câncer mama.
Por outro lado, apesar dos estados das regiões Sul e Sudeste apresentarem melhores desfechos de letalidade do câncer de mama, dentro do contexto, isso provavelmente se deve aos seus maiores níveis socioeconômico. Todavia, as elevadas taxas de incidência do câncer de mama estimadas para os municípios das regiões Sul e Sudeste, em comparação com os estados da região Norte e Nordeste, evidenciam que esta neoplasia impacta de maneira significativa a saúde das mulheres residentes em tais regiões, além do impacto sobre o sistema como um todo. Portanto, as ações de prevenção e controle nestes municípios é fundamental para reduzir o impacto do câncer de mama na população feminina (Polverini et al, 2017).
O estudo evidenciou ainda que, cerca de 98% dos municípios brasileiros apresentaram uma estimativa de incidência em números absolutos menor de 100 casos. Este cenário de grande dispersão é um desfio para a gestão de saúde e destaca a importância de os estados possuírem um sistema eficiente de regulação de oferta dos serviços de saúde, a fim de que, mesmo as pacientes residentes em municípios com pouquíssimos números de casos, possam ser diagnosticadas precocemente e encaminhadas para o imediato início do tratamento.
É importante destacarmos que o presente estudo é uma estimativa e possui algumas limitações. A principal delas é que nesta análise assume-se que a relação entre a incidência e mortalidade por câncer de mama do estado é constante em todos os seus municípios. Além disso, os dados de incidência dos estados são as estimativas realizadas pelo INCA, de modo que a incerteza inerente a estas estimativas é propagada para as estimativas dos municípios. Finalmente, as nossas estimativas utilizam dados populacionais diferentes dos utilizados pelo INCA, devido ao nível de desagregação necessário para as análises por cidade.
No entanto, as validações dos resultados demonstram que a estimativa da incidência do câncer de mama dos municípios para o ano de 2020 apresentou grande concordância com as estimativas estaduais e nacional realizadas pelo INCA. Desta forma, os resultados do presente estudo se configuram como uma importante ferramenta de gestão de saúde pública que poderá ser utilizada por gestores e profissionais da saúde na implementação de ações de prevenção e controle do câncer de mama personalizadas às realidades locais e, consequentemente, mais eficientes.
Considerações Finais:
Os dados de morbimortalidade do câncer de mama são fundamentais para o monitoramento da doença, bem como para o planejamento, implementação e avaliação de políticas de prevenção e controle da doença. A disponibilidade de dados desagregados à nível dos municípios são de grande importância para elaboração de políticas adaptadas às diferentes realidades sociais e econômicas locais. Desta forma, as estimativas das taxas de incidência brutas e ajustadas dos municípios apresentadas neste estudo serão uma ferramenta que contribuirá com a gestão das políticas municipais voltadas a prevenção, rastreamento, tratamento e controle do câncer de mama no Brasil.
Referências bibliográficas:
Black RJ, et al. Cancer incidence and mortality in the European Union: cancer registry data and estimates of national incidence for 1990. Eur J Cancer. 1997; 33(7): 1075-1107.
Bray F, et al. Global cancer transitions according to the Human Development Index (2008–2030): a population-based study. Lancet Oncol. 2012;13(8):790-801. https://doi.org/10.1016/S1470-2045(12)70211-5
Bray F, et al. Planning and developing populations-based cancer registration in low-and middle-income settings. Lyon, France: International Agency for Research on Cancer, 2014. (IARC technical publication, n. 43). Disponível em: http://www.rho.org/files/ IARC_Planning_developing_cancer_registries_2014.pdf. Acesso em: 10/02/2021
Correa N. Câncer antes dos 50: Como os dados podem ajudar nas políticas de prevenção. Observatório de Oncologia. Disponível em: https://observatoriodeoncologia.com.br/cancer-antes-dos-50-como-os-dados-podem-ajudar-nas-politicas-de-prev/. Acesso em: 10/03/2020.
Departamento de Infomática do SUS- DATASUS. Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/obt10uf.def. Acesso em: 17/01/2021.
Doll R, Payne PM, Waterhouse JAH. Cancer incidence in five countries. International Union Against Cancer, Springer-Verlag. Berlin. 1966.
Eriksson L, et al. Time from breast cancer diagnosis to therapeutic surgery and breast cancer prognosis: A population-based cohort study. Int J Cancer. 2018;143(5):1093-1104. doi: 10.1002/ijc.31411.
Franzoi MA. Advanced Stage at Diagnosis and Worse Clinicopathologic Features in Young Women with Breast Cancer in Brazil: A Subanalysis of the AMAZONA III Study (GBECAM 0115). J Glob Oncol. 2019;5:1-10. doi: 10.1200/JGO.19.00263.
Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva- INCA. Coordenação de Prevenção e Vigilância. Estimativa 2020: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA, 2020a.
Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva- INCA. Registro de Câncer de Base Populacional- São Paulo. 2020bDisponível em: https://www.inca.gov.br/BasePopIncidencias/Home.action#conteudo-rcbp. Acesso em: 29/01/2021.
Lee BL, et al. Breast cancer in Brazil: present status and future goals. Lancet Oncol. 2012;13(3):e95-e102. doi: 10.1016/S1470-2045(11)70323-0.
Mello Ramirez Medina J, et al. Advanced Clinical Stage at Diagnosis of Breast Cancer Is Associated With Poorer Health-Related Quality of Life: A Cross-Sectional Study. Eur J Breast Health. 2018;15 (1): 26-31. doi: 10.5152/ejbh.2018.4297
Polverini AC, et al. Time to Treatment: Measuring Quality Breast Cancer Care. Ann Surg Oncol. 2016;23(10):3392-402. doi: 10.1245/s10434-016-5486-7.
Renna Junior NL, Silva GAE. Late-Stage Diagnosis of Breast Cancer in Brazil: Analysis of Data from Hospital-Based Cancer Registries (2000-2012). Rev Bras Ginecol Obstet. 2018;40(3):127-136. doi: 10.1055/s-0038-1624580.
Rodriguez-Rincon D, et al. Factors affecting access to treatment of early breast cancer: Cases studies from Brazil, Canada, Italy Spain and UK. RAND EUROPE. 2019. Disponível em: https://www.rand.org/content/dam/rand/pubs/research_reports/RR3000/RR3010z4/RAND_RR3010z4.pdf. Acesso em: 10/03/2020
Segi M. Cancer mortality for selected sites in 24 countries (1950-57). Department of Public Health, Tohoku University of Medicine, Sendai, Japan. 1960.
Autor: Nelson Correa
Idealização e realização:
Apoio: